“Crônica do Fracasso Anunciado”
Naqueles dias, as terras eram controladas pelo imperador Qin Shi Huang Di. As terras ao norte eram ameaçadas pelos invasores que entravam e pilhavam as fazendas. A extensão das terras era enorme e o imperador tinha muita dificuldade em controlar e prover segurança entre os pequenos burgos que se espalhavam por toda a terra conhecida até aqueles tempos.
No-Ri morava com o um velho senhor, Xin Du, que o havia criado para ser o sucessor dele na pequena propriedade. Ele foi vendido por uma mulher das tribos dos nômades ao ferreiro, mas, como ele já tinha muitos filhos e, consequentemente, muitas bocas para alimentar, foi dado do velho Xin Du como pagamento de uma dívida que o ferreiro tinha com o velho. Ele devia ter dez anos, mas, ele não sabia contar nessa época. O velho o ensinou a ler, escrever e contar. E lhe deu um nome, pois, até então, ele não tinha um nome. Na verdade, vários nomes que mudavam cada vez que ele ia para um novo grupo. Em troca, No-Ri tinha que preparar o terreno para que eles pudessem juntar o barro e fazer a matéria dos tijolos. Faziam uma argamassa de terra com juncos e lascas de bambu moído, que era o que dava consistência muito dura ao tijolo, com a dureza de quase uma pedra de verdade. Bastava colocar no forno e aquela terra úmida secava e adquiria essa dureza.
Um dia de primavera, quando o sol começava a esquentar o clima úmido e frio que os castigava, apareceu um homem que se autodenominava Caminhante. Ele disse ser um monge e queria trabalhar em troca de comida e pousada antes de voltar para a estrada. O Caminhante, com uns trinta anos de idade, pouco falava e contava de si para os dois donos da fazenda. Certo dia, foram os três entregar uma leva de tijolos no burgo mais próximo, pois um general do exército havia encomendado mais de uma centena de tijolos para construírem um novo posto para as tropas nas redondezas do caminho dos homens que levavam as mercadorias para a cidade do imperador. Após descarregarem a encomenda, os três foram passear pelo mercado e No-Ri se encantou com as estátuas de terracota que um artista estava expondo na feira. O Caminhante percebeu o interesse do menino e perguntou se ele gostaria de aprender a fazer uma estátua como aquela. No-Ri confirmou prontamente.
E ele começou a ensinar o jovem No-Ri a dar forma e a esculpir formas na argila. O Caminhante percebeu que o rapaz tinha um dom natural para a arte das imagens. E, logo, logo, ele consegui reproduzir com fidelidade o rosto de uma pessoa em tamanho natural. Mas, o velho Xin Du não via com bons olhos a empreitada dos dois e começou a lhes dar mais e mais afazeres para que se cansassem muito e deixassem as esculturas de lado.
- Parem com isso – ordenava o velho Xin Du -. Vocês devem deixar essa bobagem de lado e começar a trabalhar com mais vontade. Esse tipo de coisa não encherá a nossa despensa de comida e nem alimentará o nosso magro gado.
Para evitar as retaliações do velho, eles, às escondidas, trabalhavam durante a noite no estábulo que servia de dormitório para os dois. E No-Ri se tornava melhor a cada dia que passava.
Quando o sol começou a ficar causticante e o tempo mais seco, o Caminhante resolveu voltar à sua jornada. No-Ri sentiu-se abandonado pelo professor, mas, antes de pegar a estrada, o Caminhante o fez prometer que iria continuar a moldar argila e a aperfeiçoar a sua arte de esculpir. E No-Ri cumpriu a promessa. Todas as noites, antes de dormir, ele iniciava uma estátua pequena de tudo que ele via. Eram pássaros, vacas, pessoas. E ele tinha se tornado muito bom em moldar pessoas em argila de maneira exímia.
Mas, quando o velho Xin Du encontrava alguma estátua perdida pelo estábulo, ou mesmo, pela fazenda, ou sendo recém moldada, ela as quebrava com fúria colérica. E No-Ri era castigado com um pedaço de bambu que o velho o tinha feito recolher para que ele apanhasse quando desobedece uma ordem dele.
Numa dessas surras, No-Ri resolveu dar um basta naquela situação. Nunca iria levantar a mão para o velho, mas não queria mais apanhar como um boi no arado. Decidiu que fugiria durante a madrugada, somente com as poucas peças de roupa que ele tinha e com as estátuas que ele fabricou e queimou no forno para que se tornassem duras como o bronze.
Ele fugiu sob uma lua cheia enorme que iluminava a estrada como se fosse o próprio dia. Caminhou dois dias inteiros, faminto e sedento, até chegar ao burgo mais próximo onde encontrou uma feira. Lá se instalou, colocando as peças de terracota sobre um pano que, também, servia de cobertor a noite. As pessoas olhavam, paravam, pegavam, mas não compravam. Recebia as mais variadas críticas a respeito das suas obras – feias, estranhas, engraçadas, malfeitas, mal acabadas, etc – e isso acabava com a sua motivação. Para ele, as peças estavam lindas, diferentes do que os outros artesãos estavam vendendo. Mas para os outros, de nada valia.
Desmotivado, ele voltou para a fazenda, percorrendo o mesmo caminho, sob o sol abrasador do verão. Ao chegar, depois de cinco dias, ele apanhou do velho Xin Du. Só que, desta vez, a surra não doia tanto, pois já tinha sido ferido interiormente pelas pessoas do burgo. Aceitava resignado a sua punição, achando que o velho estava correto na sua atitude.
Mesmo assim, ele havia prometido ao Caminhante que não pararia de se aperfeiçoar na arte de moldar argila. E foi isso que ele fez por vários meses, sem que o velho soubesse. No-Ri era um homem honrado, uma das poucas coisas que ele havia aprendido com Xin Du, ser uma pessoa de palavra e honrar os seus compromissos.
O inverno se aproximava e eles tinham que entregar a última leva de tijolos para o general do imperador. O velho Xin Du estava doente e No-Ri teve que ir ao burgo para fazer a entrega sozinho. Abasteceu a carroça e voltou para a fazenda, sendo que sua estada no burgo havia durado dois dias por causa da falta de alguns alimentos. Assim que entrou pelo portão de madeira, ele percebeu que havia alguma coisa errada. O velho não havia saído para a porta da casa para reclamar da demora da sua volta com a comida. Carregando em suas costas uma saca de arroz molhada pela chuva que caia torrencialmente, ele entrou na casa escura e fria. Ele olhou para o canto da casa de dois cômodos e viu que o velho Xin Du dormia tranquilamente. Como estava muito úmida e fria, ele procurou por madeira seca para acender a lareira e esquentar o ambiente. Logo que o fogo iluminou o local, ele se aproximou do velho e percebeu que ele estava morto. Deveria ter morrido enquanto ele estava no brugo.
Com o coração pesado, ele enterrou o velho nos fundos da casa. O inverno chegou e ele havia recebido mais um pedido do ferreiro de mais de uma centena de tijolos para que ele construisse mais uma parte da sua oficina. E lá foi No-Ri, desçalço, juntar argila, junco e bambus para fazer mais peças para entregar, o mais rápido possível para o ferreiro, antes que a neve cobrisse o caminho até o burgo. Mas, com a chuva, a terra não estava muito fácil de fazer a liga com o junco e com o bambu. Ele tentava, mas os tijolos ficavam frágeis, quebradiços, e o tempo estava correndo contra ele. Novamente, ele fazia alguns e o fracasso se repetia, cada vez mais. Começou a se desesperar pois havia prometido ao ferreiro aquela centena, a primeira delas, e não estava conseguindo fazer tijolos bons o suficiente para construir nada. E ele tinha que honrar a sua palavra. Fez a centena encomendada e resolveu entregar, assim mesmo, para o ferreiro, que iria lhe pagar pelo material. Quando o ferreiro começou a erguer a parede, os tijolos se partiram, viraram pó pois não suportavam o peso de outros tijolos sobre si. O ferreiro voltou, furioso, e o xingou de todas as maneiras possível e exigiu as moedas de volta. Mas, ele já havia trocado por panelas e comida, e não tinha mais consigo. Acompanhado por seus filhos, o ferreiro invadiu a casa e levou todas as panelas e tudo o que pudesse reverter o pagamento que havia feito. Deixaram somente alguns pratos e canecas de nenhum valor para que ele se virasse. E, ainda levaram o boi mais forte, aquele que ele usava para mexer a terra e retirar a argila dela.
Tudo havia terminado. Ele estava sem nada. Abandonado à propria sorte novamente. Sentiu muito a falta do velho Xin Du, da autoridade e do dinamismo que o velho tinha. Agora, ele sabia que o velho tinha muitas responsabilidades que, quando Xin Du estava vivo, ele nem desconfiava. Ele tinha fracassado. Ele era um fracassado.
Para espantar a solidão, ele resolveu construir uma estátua de argila, em tamanho real, do velho Xin Du. Ao menos, se sentiria menos solitário, mesmo que a estátua não respondesse, mas, poderia fingir que ela respondia e que o velho ainda lhe fazia companhia. Após o trabalho ter acabado, ele a colocou na peça maior da casa, onde ele poderia vê-la. Depois, inspirado pela falta do que fazer, pois a neve tinha caído e tapado a estrada para o burgo, ele resolveu moldar o boi que o ferreiro e seus filhos tinham levado consigo em troca das moedas que ele havia gasto.
Com o passar dos dias daquele inverno prolongado, ele foi moldando e levando ao forno vários outros animais, e pessoas para que lhe fizessem companhia. Moldou até uma namorada, inspirado nas lembranças das moças que ele via no burgo. E foi preenchendo o tempo e a cabana com aqueles silenciosos acompanhantes. E, tinha decidido também, que lutaria bravamente para voltar a fazer tijolos tão bons quanto os do velho Xin Du.
A primavera chegou novamente. Para celebrar o fim daquele inverno gelado, ele colocou as estátuas na frente da casa, enquanto ele ia até a olaria para fabricar algumas dezenas de tijolos e descobrir como achar o ponto certo na mistura da argila, juncos e bambus. Ele tinha a companhia das estátuas e não se sentia só. Ainda assim, sentia um gosto amargo de fracasso que ficara na sua boca desde que o velho Xin Du partira. O velho senhor tinha razão, ele nunca seria um artesão tão bom quanto os do burgo. Ele havia sonhado em moldar uma estátua do imperador, poder ganhar algumas moedas com a sua arte, ter um certo reconhecimento. Mas, era somente um sonho e mais nada. A realidade era muito diferente e ele era somente mais um sonhador que não sabia, ao menos, fazer uma dezena de tijolos que prestasse.
Ele trabalhava dia e noite para descobrir a forma exata de fazer tijolos, e sempre fracassava. Certa tarde de verão, ele estava na olaria trabalhando, quando se aproximou uma comitiva do portão da fazenda. Mensageiros entraram e pediram para que deixasse eles descansar alí, pois haviam viajado por muitos dias, eles e os cavalos precisavam se recuperar da longa jornada. No-Ri concordou.
Quando estava para voltar para olaria, uma voz masculina da carruagem o chamou pelo seu ofício. Ele se aproximou e respondeu à pessoa que estava dentro do veículo puxado por dois fortes cavalos. A pessoa perguntou sobre Xin Du, e ele informou que ele havia morrido no início do inverno. E, também, informou que havia sido ele quem havia herdado o ofício de fabricar tijolos, mas foi sincero e admitiu que não conseguia fazer tijolos tão bons quanto o velho Xin Du. De dentro da carruagem, desceu um homem vestindo roupas de seda e de algodão, ornado com fios dourados. Era quase a figura de um deus.
Inicialmente, ele não reconheceu quem era o homem. Mas, este o chamou pelo nome. Ao se apresentar como Sima Qian, só que ele o conhecia como o Caminhante. Ele trabalhava para o imperador e havia parado alí, justamente, para saber se ele tinha mantido a promessa que havia feito algum tempo antes. No-Ri estava radiante em ver o Caminhante novamente. Tinha sido ele o mestre e a única pessoa que o havia incentivado a continuar a moldar as suas estátuas de argila. No-Ri correu para mostrar o que havia feito enquanto estava preso na fazenda por causa da neve. O Caminhante olhava para as estátuas maravilhado e orgulhoso ao mesmo tempo. Só que No-Ri também falou que estava passando por momentos de dificuldade pois não sabia como dar a liga exata nos tijolos da mesma maneira que o velho Xin Du fazia.
O Caminhante olhou para ele e explicou que ele estava no ofício errado. O dom dele, de No-Ri não era ser oleiro, mas sim artesão. Ele tinha recebido dos deuses a magia de moldar argila em formas humanas, animais e coisas mais elaboradas que tijolos. Ainda, explicou para No-Ri que ele andava pelas aldeias e burgos a procura de artesãos para trabalhar para o imperador. O imperador o havia incumbido de juntar os melhores artesãos de todas as terras que ele dominava para um trabalho especial e que, quem trabalhasse para ele, seria muito bem recompensado com terras, moedas e outras regalias que somente o imperador poderia proporcionar para qualquer pessoa.
O Caminhante perguntou para No-Ri se ele gostaria de deixar a sua arte para toda a eternidade, e ele respondeu que sim. Ambos se encaminharam para o centro do estado de Qin, a cidade de Xian, a principal cidade do império. Lá, No-Ri foi incumbido, por 38 anos,de comandar uma enorme quantidade de artesãos para fazer o famoso exército de terracota de Xian.
Finalmente, ele achou o seu verdadeiro ofício e deixou de ser um fracassado. Na verdade, ele nunca havia fracassado. Ele somente estava na direção errada. Isso prova que, quando temos uma habilidade, devemos acreditar que podemos e procurar sermos melhores quanto o possível nessa função. Sempre acreditarmos no nosso potencial, mesmo que outras pessoas critiquem, por não entenderem, ou não vislumbrarem, o que queremos e as nossas capacidades.
O fracasso é uma questão de escolha e desistência. O sucesso é somente uma questão de persistência e aprimoramento.
sexta-feira, 26 de junho de 2009
Diário de Uma Linda Mulher Chamada Juju
“FELIZ ANO NOVO”
Gente, feliz ano novo! É uma maravilha quando a gente tem aquela expectativa do ano que se inicia, não é mesmo? Ainda mais, quando a gente faz aquele monte de promessas que não vai cumprir. Mas, a gente tenta. Verdade. Quem não consegue cumprir uma promessa, sabe muito bem com é difícil tentar cumprir.
Falando nisso, quero compartilhar com vocês as minhas tentativas de cumprir as minhas promessas. E, dessa vez, eu vou conseguir. Uma geminiana com ascendente em libra tem determinação. Mesmo que seja de um alcoólatra dentro de um bar dizendo que vai ser a última vez que ele toma um gole de cachaça, depois do décimo copo.
Uma das promessas, essa nós mulheres fazemos todos os anos, é de diminuir o peso. Gente, e como a gente sofre com isso. Eu me lembro que eu dormi como uma sereia e acordei como uma baleia encalhada numa praia. O que é pior, cheia de surfistas sarados e deliciosos tentando me tirar da areia. Mas, no dia trinta e um do ano passado, eu me olhei no espelho e me vi, não por inteira, por que o meu espelho da sala é só uma faixa de um metro e cinqüenta de largura por dois metros de altura. Um espelho pequeno, nas devidas proporções. E eu vi que eu estava cheinha. Uns quilinhos a mais. Uns dez ou vinte. E disse pra mim mesma – “menina, depois de hoje á noite, é regime”. Toneladas de saladas verdes, água natural, sucos ácidos, e uma meta, voltar a usar os vestidos que eu usava há dez anos atrás. Aí, me lembrei de como eu era há dez anos atrás e eu me deprimi. Eu era magrinha, cintura violão, cabelo tingido, mas sedoso, sem rugas de expressão, até meio gostosinha. E, olhando as partes que cabiam no espelho, e olha que eu não sou gorda “gorda”, sou muito saudável, me deu um aperto aqui no peito. E eu iria na casa da minha amiga Simone para a ceia. E lá eles comem muito. E o que mais eu odeio naquela gente, todo mundo em forma. Nem os caras que têm aquela usual barriga de cerveja, não tem. Ai, que ódio!
Mas eu fui. Determinada a comer um prato de lentilha – pra trazer dinheiro -, ignorar a carne de porco – muita gordura -, beber cidra moderadamente – tem muitas calorias – , e evitar, categoricamente, todas as tentações que estariam naquela mesa maravilhosa. Ah, veio a virada de ano. Estoura champanhe de um lado, e a comida rolando de outro e eu ali, firme, agradecendo tudo e me servindo o mínimo possível. Enchi um prato com uma salada verde, peguei um pedacinho de carne de porco, mínimo mesmo, e um pouquinho de lentilha. E, pra descer toda aquela comida saudável e insossa, peguei mais uma taça de champanhe que o Pedro, irmão da Simone, encheu pra mim. Foi o pratinho numa boa. E, para evitar que a tentação me pegasse, fui para a sala com meia garrafa de cidra que eu achei abandonada num canto da sala de jantar. Fui para a sala e comecei a conversar com o Pedro e o desgraçado, com aquele tanquinho na barriga, não parava de comer na minha frente. E de trazer mais champanhe. Eu, evitava olhar para aquele prato de caminhoneiro, com comida até a borda, e com mais coisas que eu, graças a Deus, nem sabia que tinha. E, ele muito atencioso, me oferecia, esse desgraçado filho da mãe. Mas, eu gentilmente negava.
E começou a fissura gastronômica. Era “Lombinho a Pururuca”, “Arroz à Grega”, “Lentilha com Queijo Roquefort”, “Costelinha Doze Horas”, “Salada com Iogurte”, e mais um cardápio que eu delirava toda a vez que ele aparecia na minha frente com aquele prato transbordando. E assim que ele chegava, eu saia, para evitar assistir aquela pouca vergonha maravilhosa. Eu tinha vontade de me atracar no prato com um cachorro ataca um osso. Mas, eu resistia. Ele sentava, eu ia buscar mais champanhe para disfarçar a fome.
Aí, gente, nem sei como eu vou contar o que aconteceu. Não por vergonha, mas por que eu não lembro mesmo. Apaguei. Acho que de tanta champanhe, acabei tomando um porre homérico. Acordei no hospital, com uma agulha de glicose na minha veia, com a roupa toda suja como quem brigou na rua.
Me apavorei. Consegui achar o celular na minha bolsa e liguei para a Simone.
O pai dela me atendeu. Quando eu falei o meu nome, não entendi o porquê da gargalhada, mas eu senti um frio descendo pela minha espinha. E, sem o mínimo pudor, ele me contou como eu tinha ido parar naquela sala de emergência.
Ele me disse, que eu tive um ataque. Que o champanhe tinha me deixado, um pouco alta. Falando bem a verdade, muito alta. Eu tinha “mamado” quinze champanhes deles. E que ataquei, desesperada, a mesa, comendo pratos e mais pratos de comida, com se eu tivesse vindo da Etiópia. Não só tinham ido os pratos que eu falei antes, como até os bombons que eu achei escondido no fundo do armário, a comida do cachorro, até as frutas de cera que a mãe da Simone colocava em cima da mesa de centro da sala.
Eu queria morrer! Ele me disse que tiveram que me imobilizar para que eu não comesse mais nada. Numa camisa de força. E eu nem vi os enfermeiros. Que saco. E que a mobília escapou por que não tinha dado tempo de eu morder, e que, nem o prato do cachorro que estava cheio de restos de comida chinesa do almoço, escapou..
Depois, ele me disse que, assim que a Simone, chegasse, ele pediria para ela me ligar. Agradeci pela gentileza. E, ele em tom de deboche, disse que eles iriam encher a despensa deles para quando eu fosse visitar não passasse fome. Ai, que ódio!
Bem, sendo muito sincera, eu não tive culpa. Isso mesmo: eu não tive culpa! Todo mundo é testemunha de que eu resisti bravamente. Mas eu fui tentada. Tentada, e muito bem tentada, pelo irmão da Simone e sucumbi àquele champanhe vagabundo.
E quer saber o que é pior? Eu nem lembro do gosto daquele Lombinho à Pururuca.
Gente, feliz ano novo! É uma maravilha quando a gente tem aquela expectativa do ano que se inicia, não é mesmo? Ainda mais, quando a gente faz aquele monte de promessas que não vai cumprir. Mas, a gente tenta. Verdade. Quem não consegue cumprir uma promessa, sabe muito bem com é difícil tentar cumprir.
Falando nisso, quero compartilhar com vocês as minhas tentativas de cumprir as minhas promessas. E, dessa vez, eu vou conseguir. Uma geminiana com ascendente em libra tem determinação. Mesmo que seja de um alcoólatra dentro de um bar dizendo que vai ser a última vez que ele toma um gole de cachaça, depois do décimo copo.
Uma das promessas, essa nós mulheres fazemos todos os anos, é de diminuir o peso. Gente, e como a gente sofre com isso. Eu me lembro que eu dormi como uma sereia e acordei como uma baleia encalhada numa praia. O que é pior, cheia de surfistas sarados e deliciosos tentando me tirar da areia. Mas, no dia trinta e um do ano passado, eu me olhei no espelho e me vi, não por inteira, por que o meu espelho da sala é só uma faixa de um metro e cinqüenta de largura por dois metros de altura. Um espelho pequeno, nas devidas proporções. E eu vi que eu estava cheinha. Uns quilinhos a mais. Uns dez ou vinte. E disse pra mim mesma – “menina, depois de hoje á noite, é regime”. Toneladas de saladas verdes, água natural, sucos ácidos, e uma meta, voltar a usar os vestidos que eu usava há dez anos atrás. Aí, me lembrei de como eu era há dez anos atrás e eu me deprimi. Eu era magrinha, cintura violão, cabelo tingido, mas sedoso, sem rugas de expressão, até meio gostosinha. E, olhando as partes que cabiam no espelho, e olha que eu não sou gorda “gorda”, sou muito saudável, me deu um aperto aqui no peito. E eu iria na casa da minha amiga Simone para a ceia. E lá eles comem muito. E o que mais eu odeio naquela gente, todo mundo em forma. Nem os caras que têm aquela usual barriga de cerveja, não tem. Ai, que ódio!
Mas eu fui. Determinada a comer um prato de lentilha – pra trazer dinheiro -, ignorar a carne de porco – muita gordura -, beber cidra moderadamente – tem muitas calorias – , e evitar, categoricamente, todas as tentações que estariam naquela mesa maravilhosa. Ah, veio a virada de ano. Estoura champanhe de um lado, e a comida rolando de outro e eu ali, firme, agradecendo tudo e me servindo o mínimo possível. Enchi um prato com uma salada verde, peguei um pedacinho de carne de porco, mínimo mesmo, e um pouquinho de lentilha. E, pra descer toda aquela comida saudável e insossa, peguei mais uma taça de champanhe que o Pedro, irmão da Simone, encheu pra mim. Foi o pratinho numa boa. E, para evitar que a tentação me pegasse, fui para a sala com meia garrafa de cidra que eu achei abandonada num canto da sala de jantar. Fui para a sala e comecei a conversar com o Pedro e o desgraçado, com aquele tanquinho na barriga, não parava de comer na minha frente. E de trazer mais champanhe. Eu, evitava olhar para aquele prato de caminhoneiro, com comida até a borda, e com mais coisas que eu, graças a Deus, nem sabia que tinha. E, ele muito atencioso, me oferecia, esse desgraçado filho da mãe. Mas, eu gentilmente negava.
E começou a fissura gastronômica. Era “Lombinho a Pururuca”, “Arroz à Grega”, “Lentilha com Queijo Roquefort”, “Costelinha Doze Horas”, “Salada com Iogurte”, e mais um cardápio que eu delirava toda a vez que ele aparecia na minha frente com aquele prato transbordando. E assim que ele chegava, eu saia, para evitar assistir aquela pouca vergonha maravilhosa. Eu tinha vontade de me atracar no prato com um cachorro ataca um osso. Mas, eu resistia. Ele sentava, eu ia buscar mais champanhe para disfarçar a fome.
Aí, gente, nem sei como eu vou contar o que aconteceu. Não por vergonha, mas por que eu não lembro mesmo. Apaguei. Acho que de tanta champanhe, acabei tomando um porre homérico. Acordei no hospital, com uma agulha de glicose na minha veia, com a roupa toda suja como quem brigou na rua.
Me apavorei. Consegui achar o celular na minha bolsa e liguei para a Simone.
O pai dela me atendeu. Quando eu falei o meu nome, não entendi o porquê da gargalhada, mas eu senti um frio descendo pela minha espinha. E, sem o mínimo pudor, ele me contou como eu tinha ido parar naquela sala de emergência.
Ele me disse, que eu tive um ataque. Que o champanhe tinha me deixado, um pouco alta. Falando bem a verdade, muito alta. Eu tinha “mamado” quinze champanhes deles. E que ataquei, desesperada, a mesa, comendo pratos e mais pratos de comida, com se eu tivesse vindo da Etiópia. Não só tinham ido os pratos que eu falei antes, como até os bombons que eu achei escondido no fundo do armário, a comida do cachorro, até as frutas de cera que a mãe da Simone colocava em cima da mesa de centro da sala.
Eu queria morrer! Ele me disse que tiveram que me imobilizar para que eu não comesse mais nada. Numa camisa de força. E eu nem vi os enfermeiros. Que saco. E que a mobília escapou por que não tinha dado tempo de eu morder, e que, nem o prato do cachorro que estava cheio de restos de comida chinesa do almoço, escapou..
Depois, ele me disse que, assim que a Simone, chegasse, ele pediria para ela me ligar. Agradeci pela gentileza. E, ele em tom de deboche, disse que eles iriam encher a despensa deles para quando eu fosse visitar não passasse fome. Ai, que ódio!
Bem, sendo muito sincera, eu não tive culpa. Isso mesmo: eu não tive culpa! Todo mundo é testemunha de que eu resisti bravamente. Mas eu fui tentada. Tentada, e muito bem tentada, pelo irmão da Simone e sucumbi àquele champanhe vagabundo.
E quer saber o que é pior? Eu nem lembro do gosto daquele Lombinho à Pururuca.
As Histórias do Meu Amigo Pinto
“EMOÇÃO NO BUZÃO NUMA SEGUNDA-FEIRA”
Eu odeio segundas-feiras. Desde que eu era criança. Odeio ainda mais quando estou atrasado para o trabalho, depois de esperar por quarenta e cinco minutos num fila, em pleno dia de verão, e você olhar para frente e constatar que você é o número sessenta e oito para entrar num ônibus que têm quarenta e oito lugares sentados. Ou seja, a viagem vai ser de pé.
Finalmente, depois de toda essa espera, e depois do meu banho ter ido para o saco e de os meus sovacos estarem encharcados de suor, desenhando aquela celebre mancha molhada na camisa branca, o ônibus parou e a gente entrou. “Gente” é puramente força da expressão. Parecia uma manada de elefantes fugindo desesperados de um rato branco de laboratório ônibus à dentro. Frases básicas como “com licença”, “me desculpa” ou um simples sorriso são substituídas por “olha por onde anda, idiota”, “sai que eu quero passar” ou “perdeu alguma coisa aqui pra ta olhando pra mim?”. Aí, todo mundo senta nos bancos disponíveis, sendo que os reservados para idosos e gestantes são ocupados por todos os passageiros que não são nem idosos e nem gestantes. E você acaba em pé, segurando numa barra presa ao teto que você nem tem idéia de quem foi que tocou antes – e é muito bom você nem pensar a respeito disso -, mas seguramente amparado por duas pessoas mal-encaradas de cada lado, olhando pra você com cara de que estão esperando serem assaltadas a qualquer momento; por um cara que tem uma barriga maior que a sua e a encosta nas suas costas – e, antes de mais nada, vai uma dica de sobrevivência num ônibus lotado: nunca olhe ou pense qual parte do corpo está encostada em você -, e a região mais baixo do seu abdômen prensada contra a parte de ferro dos bancos. Você terá um pouco se sorte de encostar no ombro de alguém e a pessoa não reagir violentamente quanto a essa aproximação.
Continuando esse maravilhoso início de dia, a melhor parte é quando o calor humano se aquece e o desodorante começa a vencer. Ah, isso pra quem usa desodorante, é claro. Ou, quando, perfumes nauseabundos de gases intestinais invadem o ar, fazendo com que alguém, muito ultrajado com o cheiro, se manifeste educadamente: “Aqui não é banheiro, seu porco, deixa pra cagar quando chegar.”
Mas fora isso, fora o atraso, fora o calor, e fora que todos os sinais de trânsito resolvem testar a sua paciência fechando a cada esquina, tudo ocorre normalmente como em toda segunda-feira.
Enquanto isso, meu amigo Pinto conversa comigo me dando sugestões do que dizer no trabalho quando a Dona Darci me perguntar o motivo do atraso. Ele me diz que eu deveria contar a verdade. Que eu acordei tarde por que tive motivo de insônia, peguei o ônibus lotado, o trânsito estava engarrafado, ou seja, as mesmas coisas que eu digo toda segunda-feira. Mas, no fundo, acho que isso não vai colar e ela vai me encher o saco todo o dia, aliás, como sempre. Podia dizer que o ônibus foi assaltado; ou que eu passei a noite no velório da avó da minha namorada; ou, que eu fui abduzido por alienígenas fêmeas sedentas por sexo selvagem e que passei uma noite em uma orgia intergalática. Gostei dessa idéia, vou anotar como desculpa se as outras não colarem.
Nesse momento, entre o desespero de chegar atrasado e o devaneio de estar com sorte e a Dona Darci chegar atrasada, percebo que a menina que está sentada no banco bem na frente da minha barriga, ou melhor, do meu abdômen dilatado, olha para mim com um olhar dos mais suspeitos. Um sorriso disfarçado, mas com uma ponta de malícia. “Caramba”, penso comigo mesmo, “será que eu vou ter sorte assim, logo numa segunda-feira?”. Ela é bonitinha. Deve ter uns vinte aninhos, no máximo. Loirinha de farmácia, cabelo em rabo de cavalo, magrinha, roupinha ajeitadinha, uma pasta com o nome de uma universidade e, logo abaixo, escrito “psicologia”. Ah, meu Pai, é muita sorte. Ainda bem que Você olhou para baixo, mais especificamente, pra mim. Uma psicóloga. E dizem que essas são as mais taradas e liberadas. Acho que eu nem vou mais para o emprego. Dane-se a Dona Darci. Ligo do celular e digo que eu to com uma diarréia daquelas, vou no posto de saúde e pego um atestado para abonar a falta e, por fim, convenço ela de ir lá no meu apartamento para uma tarde de “análise” comigo.
Então, o ônibus faz uma curva mais acentuada e o meu baixo ventre toca o ombro dela. Ela, simpaticamente, sorri quando eu peço desculpas. E vejo que ela não tira os olhos de mim. Uma senhora, de uns sessenta anos, começa a notar toda a ação. Isso mostra que a coisa já não é tão discreta quanto eu pensava. Mas, ela olha para mim e sorri simpaticamente. Será que é coisa do signo? Dizem que os escorpianos têm um certo carisma sexual latente. Será que o meu, despertou logo hoje? A senhora desvia o olhar para o lado. Um pouco intimidada pelo sorriso que eu lanço na tentativa de ser simpático. A menina continua firme, sentada, com o ombro no meu baixo ventre quase escondido pela minha barriga.
Meu amigo Pinto, percebendo a minha tendência ao crime, me fala para dar uma maneirada. Mas o que eu posso fazer? Subir no teto? Um cara que é dois de mim, em largura e altura se encostando em mim, o pior, cada vez mais, e eu tenho que fugir desse assédio. Discutimos e ele se cala para não entrarmos em atrito ali no ônibus.
Procuro olhar a paisagem que passa apressadamente pela janela, mas não consigo tirar os olhos da menina sentada no banco. Já nem tento mais disfarçar e ela também não. Essa cara de inocência faz com que as minhas idéias mais sacanas aflorem num grau que eu procuro controlar, mas eu nem sei se consigo disfarçar mais.
De repente, ela olha para mim e fala alguma coisa que eu não consigo ouvir direito. As pessoas conversando ao redor e o barulho infernal do ônibus abafam o que ela diz. Eu faço sinal de que eu não entendi. Ela se aproxima mais da minha barriga, digo, de mim e pede para que eu me abaixe para ela falar alguma coisa. Vi aquele olhar malicioso que toda mulher tem quando está tentando seduzir um homem e procurei me abaixar. Apesar de não ter espaço para respirar, a minha ansiedade faz com que eu me curve o máximo possível. Meu amigo Pinto, percebendo o desastre, protesta para que eu não faça isso, mas, numa situação dessas, quem é que quer ouvir conselhos. Ainda mais, com uma gata te dando mole. Ignorei totalmente. Tento me abaixar um pouco mais até sentir que uma coisa bate na minha bunda, e, pela consistência, espero que seja um celular. Levanto assustado a tempo de ver o cara com um sorriso estampado, dos mais maliciosos, no rosto. E, definitivamente, não é um celular que ele tem no bolso. Infeliz constatação.
Nesse momento, ouço um grito abafado. Olho para baixo para ver se o grito vinha de onde eu pensava que vinha, e conclui que sim. A moça estava com a cara enterrada na minha calça, mais precisamente, no meu zíper, gritando. E o que era pior, meu membro, ainda bem que coberto pela cueca branca samba-canção, saltado para fora, encostando despudoradamente no rosto dela. Não entendi o que estava acontecendo. O que era aquela situação toda.
Ouvi as pessoas se inclinando para frente, mesmo apertadas, para verem o que acontecia. Ouvi também, vindo lá de trás – “Ih, galera, ta rolando um boquetão la na frente”-. Vi quando a senhora ao lado da menina se levantou para auxiliar a outra. Opa, dessa eu não quero dar conta.
O cobrador gritou:
- Olha aí, vamos parar com essa sacanagem que esse é um ônibus de respeito.
Mas, uma mulher, não sei de onde, grita:
- Deixa de ser empata. Vamos lá, minha filha, manda ver aqui mesmo.
Eu só via a mocinha tentando se esquivar. Ela gritava e o rosto dela estava preso em alguma coisa, só que eu não entendia nada. Parecia dizer que alguma coisa estava presa na minha calça.
Só então, percebi que o brinco dela estava preso no fecho da minha calça, e, na tentativa desesperada de se livrar, ela tinha aberto o meu zíper e o meu membro tinha saltado para fora. Eu sabia que era muita sorte.
Larguei uma das mãos para ajudar, mas, quanto eu mais puxava ela, com o balanço do ônibus, ela enterrava a cara na minha calça. A galera, que estava um pouco longe, comemorava como se estivesse num jogo de futebol.
A moça, sentindo muita dor, gritava:
- Deixa que eu tiro! Deixa que eu tiro!
Todo mundo, em coro, pedia para deixar ela tirar. Parecia um final de campeonato brasileiro. E eu, com a cara mais vermelha que um pimentão, gritava para ela dizendo que eu ia tirar. Só que ela tinha que ter calma.
Depois, de muito esforço, conseguimos, em conjunto, tirar o brinco da orelha dela. E ela conseguiu respirar aliviada. Quando ela levantou o rosto, vermelho e suado, todo mundo entrou em delírio. Muitas obcenidades foram proferidas. Uns se dispunham a fazer o que eles achavam que a gente tinha acabado de fazer.
Ela, totalmente envergonhada, e visivelmente transtornada, vermelha de raiva, colérica no sentido real da palavra, olha para mim e me fuzila.Pega a bolsa, aperta contra o corpo e se levanta apertando o botão que sinaliza o pedido de parada. Olha para mim, com quem quer matar uma pessoa sem pensar nas conseqüências e fala:
- Da próxima vez, seu imbecil, fecha a calça antes de sair de casa.
E passa por todo mundo como um touro descontrolado.
Aí, sim, caiu a ficha. Ela estava querendo me dizer que eu estava com a calça aberta. E o que é pior, passou a maior vergonha por tentar ser gentil.E deu o azar de ficar com o brinco preso no meu zíper.
Num ato de moralidade e generosidade, resolvi descer, mesmo sob os protestos mais furiosos do meu amigo Pinto, e, não vou negar, com segundas e terceiras intenções, eu fui atrás dela. A tempo de ver que o cara que estava atrás de mim piscou um dos olhos com uma cara mais safada que a anterior. Não vou negar, que instintivamente, olhei para baixo e vi o tamanho do “celular” que me cutucava por trás e me apavorei.
Quando eu desci, ela já caminhava apressada e longe. Percebi que o brinco dela ainda estava preso no meu fecho e eu tentei, em vão, tirá-lo de lá. Mesmo assim, eu gritei:
- Espera, tenho uma coisa para te dar – ainda tentando tirar o brinco do zíper.
Ela, reconhecendo a minha voz, pára, olha para trás e me fita com uma expressão horrorizada e sai correndo e gritando:
- Se afasta de mim, seu tarado. Vou chamar a polícia.
Ela desapareceu em meio a multidão.
Fiquei eu lá, parado, com o zíper aberto e com um brinco preso a ele.
Olhei para o relógio e vi que estava muito mais atrasado que antes. E que teria que esperar por outro ônibus para chegar ao trabalho.
Dessa vez, acho que eu vou usar a desculpa da abdução por alienígenas sedentas por sexo. Quem sabe, de tão absurda, não cole.
Eu odeio segundas-feiras. Desde que eu era criança. Odeio ainda mais quando estou atrasado para o trabalho, depois de esperar por quarenta e cinco minutos num fila, em pleno dia de verão, e você olhar para frente e constatar que você é o número sessenta e oito para entrar num ônibus que têm quarenta e oito lugares sentados. Ou seja, a viagem vai ser de pé.
Finalmente, depois de toda essa espera, e depois do meu banho ter ido para o saco e de os meus sovacos estarem encharcados de suor, desenhando aquela celebre mancha molhada na camisa branca, o ônibus parou e a gente entrou. “Gente” é puramente força da expressão. Parecia uma manada de elefantes fugindo desesperados de um rato branco de laboratório ônibus à dentro. Frases básicas como “com licença”, “me desculpa” ou um simples sorriso são substituídas por “olha por onde anda, idiota”, “sai que eu quero passar” ou “perdeu alguma coisa aqui pra ta olhando pra mim?”. Aí, todo mundo senta nos bancos disponíveis, sendo que os reservados para idosos e gestantes são ocupados por todos os passageiros que não são nem idosos e nem gestantes. E você acaba em pé, segurando numa barra presa ao teto que você nem tem idéia de quem foi que tocou antes – e é muito bom você nem pensar a respeito disso -, mas seguramente amparado por duas pessoas mal-encaradas de cada lado, olhando pra você com cara de que estão esperando serem assaltadas a qualquer momento; por um cara que tem uma barriga maior que a sua e a encosta nas suas costas – e, antes de mais nada, vai uma dica de sobrevivência num ônibus lotado: nunca olhe ou pense qual parte do corpo está encostada em você -, e a região mais baixo do seu abdômen prensada contra a parte de ferro dos bancos. Você terá um pouco se sorte de encostar no ombro de alguém e a pessoa não reagir violentamente quanto a essa aproximação.
Continuando esse maravilhoso início de dia, a melhor parte é quando o calor humano se aquece e o desodorante começa a vencer. Ah, isso pra quem usa desodorante, é claro. Ou, quando, perfumes nauseabundos de gases intestinais invadem o ar, fazendo com que alguém, muito ultrajado com o cheiro, se manifeste educadamente: “Aqui não é banheiro, seu porco, deixa pra cagar quando chegar.”
Mas fora isso, fora o atraso, fora o calor, e fora que todos os sinais de trânsito resolvem testar a sua paciência fechando a cada esquina, tudo ocorre normalmente como em toda segunda-feira.
Enquanto isso, meu amigo Pinto conversa comigo me dando sugestões do que dizer no trabalho quando a Dona Darci me perguntar o motivo do atraso. Ele me diz que eu deveria contar a verdade. Que eu acordei tarde por que tive motivo de insônia, peguei o ônibus lotado, o trânsito estava engarrafado, ou seja, as mesmas coisas que eu digo toda segunda-feira. Mas, no fundo, acho que isso não vai colar e ela vai me encher o saco todo o dia, aliás, como sempre. Podia dizer que o ônibus foi assaltado; ou que eu passei a noite no velório da avó da minha namorada; ou, que eu fui abduzido por alienígenas fêmeas sedentas por sexo selvagem e que passei uma noite em uma orgia intergalática. Gostei dessa idéia, vou anotar como desculpa se as outras não colarem.
Nesse momento, entre o desespero de chegar atrasado e o devaneio de estar com sorte e a Dona Darci chegar atrasada, percebo que a menina que está sentada no banco bem na frente da minha barriga, ou melhor, do meu abdômen dilatado, olha para mim com um olhar dos mais suspeitos. Um sorriso disfarçado, mas com uma ponta de malícia. “Caramba”, penso comigo mesmo, “será que eu vou ter sorte assim, logo numa segunda-feira?”. Ela é bonitinha. Deve ter uns vinte aninhos, no máximo. Loirinha de farmácia, cabelo em rabo de cavalo, magrinha, roupinha ajeitadinha, uma pasta com o nome de uma universidade e, logo abaixo, escrito “psicologia”. Ah, meu Pai, é muita sorte. Ainda bem que Você olhou para baixo, mais especificamente, pra mim. Uma psicóloga. E dizem que essas são as mais taradas e liberadas. Acho que eu nem vou mais para o emprego. Dane-se a Dona Darci. Ligo do celular e digo que eu to com uma diarréia daquelas, vou no posto de saúde e pego um atestado para abonar a falta e, por fim, convenço ela de ir lá no meu apartamento para uma tarde de “análise” comigo.
Então, o ônibus faz uma curva mais acentuada e o meu baixo ventre toca o ombro dela. Ela, simpaticamente, sorri quando eu peço desculpas. E vejo que ela não tira os olhos de mim. Uma senhora, de uns sessenta anos, começa a notar toda a ação. Isso mostra que a coisa já não é tão discreta quanto eu pensava. Mas, ela olha para mim e sorri simpaticamente. Será que é coisa do signo? Dizem que os escorpianos têm um certo carisma sexual latente. Será que o meu, despertou logo hoje? A senhora desvia o olhar para o lado. Um pouco intimidada pelo sorriso que eu lanço na tentativa de ser simpático. A menina continua firme, sentada, com o ombro no meu baixo ventre quase escondido pela minha barriga.
Meu amigo Pinto, percebendo a minha tendência ao crime, me fala para dar uma maneirada. Mas o que eu posso fazer? Subir no teto? Um cara que é dois de mim, em largura e altura se encostando em mim, o pior, cada vez mais, e eu tenho que fugir desse assédio. Discutimos e ele se cala para não entrarmos em atrito ali no ônibus.
Procuro olhar a paisagem que passa apressadamente pela janela, mas não consigo tirar os olhos da menina sentada no banco. Já nem tento mais disfarçar e ela também não. Essa cara de inocência faz com que as minhas idéias mais sacanas aflorem num grau que eu procuro controlar, mas eu nem sei se consigo disfarçar mais.
De repente, ela olha para mim e fala alguma coisa que eu não consigo ouvir direito. As pessoas conversando ao redor e o barulho infernal do ônibus abafam o que ela diz. Eu faço sinal de que eu não entendi. Ela se aproxima mais da minha barriga, digo, de mim e pede para que eu me abaixe para ela falar alguma coisa. Vi aquele olhar malicioso que toda mulher tem quando está tentando seduzir um homem e procurei me abaixar. Apesar de não ter espaço para respirar, a minha ansiedade faz com que eu me curve o máximo possível. Meu amigo Pinto, percebendo o desastre, protesta para que eu não faça isso, mas, numa situação dessas, quem é que quer ouvir conselhos. Ainda mais, com uma gata te dando mole. Ignorei totalmente. Tento me abaixar um pouco mais até sentir que uma coisa bate na minha bunda, e, pela consistência, espero que seja um celular. Levanto assustado a tempo de ver o cara com um sorriso estampado, dos mais maliciosos, no rosto. E, definitivamente, não é um celular que ele tem no bolso. Infeliz constatação.
Nesse momento, ouço um grito abafado. Olho para baixo para ver se o grito vinha de onde eu pensava que vinha, e conclui que sim. A moça estava com a cara enterrada na minha calça, mais precisamente, no meu zíper, gritando. E o que era pior, meu membro, ainda bem que coberto pela cueca branca samba-canção, saltado para fora, encostando despudoradamente no rosto dela. Não entendi o que estava acontecendo. O que era aquela situação toda.
Ouvi as pessoas se inclinando para frente, mesmo apertadas, para verem o que acontecia. Ouvi também, vindo lá de trás – “Ih, galera, ta rolando um boquetão la na frente”-. Vi quando a senhora ao lado da menina se levantou para auxiliar a outra. Opa, dessa eu não quero dar conta.
O cobrador gritou:
- Olha aí, vamos parar com essa sacanagem que esse é um ônibus de respeito.
Mas, uma mulher, não sei de onde, grita:
- Deixa de ser empata. Vamos lá, minha filha, manda ver aqui mesmo.
Eu só via a mocinha tentando se esquivar. Ela gritava e o rosto dela estava preso em alguma coisa, só que eu não entendia nada. Parecia dizer que alguma coisa estava presa na minha calça.
Só então, percebi que o brinco dela estava preso no fecho da minha calça, e, na tentativa desesperada de se livrar, ela tinha aberto o meu zíper e o meu membro tinha saltado para fora. Eu sabia que era muita sorte.
Larguei uma das mãos para ajudar, mas, quanto eu mais puxava ela, com o balanço do ônibus, ela enterrava a cara na minha calça. A galera, que estava um pouco longe, comemorava como se estivesse num jogo de futebol.
A moça, sentindo muita dor, gritava:
- Deixa que eu tiro! Deixa que eu tiro!
Todo mundo, em coro, pedia para deixar ela tirar. Parecia um final de campeonato brasileiro. E eu, com a cara mais vermelha que um pimentão, gritava para ela dizendo que eu ia tirar. Só que ela tinha que ter calma.
Depois, de muito esforço, conseguimos, em conjunto, tirar o brinco da orelha dela. E ela conseguiu respirar aliviada. Quando ela levantou o rosto, vermelho e suado, todo mundo entrou em delírio. Muitas obcenidades foram proferidas. Uns se dispunham a fazer o que eles achavam que a gente tinha acabado de fazer.
Ela, totalmente envergonhada, e visivelmente transtornada, vermelha de raiva, colérica no sentido real da palavra, olha para mim e me fuzila.Pega a bolsa, aperta contra o corpo e se levanta apertando o botão que sinaliza o pedido de parada. Olha para mim, com quem quer matar uma pessoa sem pensar nas conseqüências e fala:
- Da próxima vez, seu imbecil, fecha a calça antes de sair de casa.
E passa por todo mundo como um touro descontrolado.
Aí, sim, caiu a ficha. Ela estava querendo me dizer que eu estava com a calça aberta. E o que é pior, passou a maior vergonha por tentar ser gentil.E deu o azar de ficar com o brinco preso no meu zíper.
Num ato de moralidade e generosidade, resolvi descer, mesmo sob os protestos mais furiosos do meu amigo Pinto, e, não vou negar, com segundas e terceiras intenções, eu fui atrás dela. A tempo de ver que o cara que estava atrás de mim piscou um dos olhos com uma cara mais safada que a anterior. Não vou negar, que instintivamente, olhei para baixo e vi o tamanho do “celular” que me cutucava por trás e me apavorei.
Quando eu desci, ela já caminhava apressada e longe. Percebi que o brinco dela ainda estava preso no meu fecho e eu tentei, em vão, tirá-lo de lá. Mesmo assim, eu gritei:
- Espera, tenho uma coisa para te dar – ainda tentando tirar o brinco do zíper.
Ela, reconhecendo a minha voz, pára, olha para trás e me fita com uma expressão horrorizada e sai correndo e gritando:
- Se afasta de mim, seu tarado. Vou chamar a polícia.
Ela desapareceu em meio a multidão.
Fiquei eu lá, parado, com o zíper aberto e com um brinco preso a ele.
Olhei para o relógio e vi que estava muito mais atrasado que antes. E que teria que esperar por outro ônibus para chegar ao trabalho.
Dessa vez, acho que eu vou usar a desculpa da abdução por alienígenas sedentas por sexo. Quem sabe, de tão absurda, não cole.
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