sexta-feira, 26 de junho de 2009

Penso, Logo Existo

“Crônica do Fracasso Anunciado”


Naqueles dias, as terras eram controladas pelo imperador Qin Shi Huang Di. As terras ao norte eram ameaçadas pelos invasores que entravam e pilhavam as fazendas. A extensão das terras era enorme e o imperador tinha muita dificuldade em controlar e prover segurança entre os pequenos burgos que se espalhavam por toda a terra conhecida até aqueles tempos.
No-Ri morava com o um velho senhor, Xin Du, que o havia criado para ser o sucessor dele na pequena propriedade. Ele foi vendido por uma mulher das tribos dos nômades ao ferreiro, mas, como ele já tinha muitos filhos e, consequentemente, muitas bocas para alimentar, foi dado do velho Xin Du como pagamento de uma dívida que o ferreiro tinha com o velho. Ele devia ter dez anos, mas, ele não sabia contar nessa época. O velho o ensinou a ler, escrever e contar. E lhe deu um nome, pois, até então, ele não tinha um nome. Na verdade, vários nomes que mudavam cada vez que ele ia para um novo grupo. Em troca, No-Ri tinha que preparar o terreno para que eles pudessem juntar o barro e fazer a matéria dos tijolos. Faziam uma argamassa de terra com juncos e lascas de bambu moído, que era o que dava consistência muito dura ao tijolo, com a dureza de quase uma pedra de verdade. Bastava colocar no forno e aquela terra úmida secava e adquiria essa dureza.
Um dia de primavera, quando o sol começava a esquentar o clima úmido e frio que os castigava, apareceu um homem que se autodenominava Caminhante. Ele disse ser um monge e queria trabalhar em troca de comida e pousada antes de voltar para a estrada. O Caminhante, com uns trinta anos de idade, pouco falava e contava de si para os dois donos da fazenda. Certo dia, foram os três entregar uma leva de tijolos no burgo mais próximo, pois um general do exército havia encomendado mais de uma centena de tijolos para construírem um novo posto para as tropas nas redondezas do caminho dos homens que levavam as mercadorias para a cidade do imperador. Após descarregarem a encomenda, os três foram passear pelo mercado e No-Ri se encantou com as estátuas de terracota que um artista estava expondo na feira. O Caminhante percebeu o interesse do menino e perguntou se ele gostaria de aprender a fazer uma estátua como aquela. No-Ri confirmou prontamente.
E ele começou a ensinar o jovem No-Ri a dar forma e a esculpir formas na argila. O Caminhante percebeu que o rapaz tinha um dom natural para a arte das imagens. E, logo, logo, ele consegui reproduzir com fidelidade o rosto de uma pessoa em tamanho natural. Mas, o velho Xin Du não via com bons olhos a empreitada dos dois e começou a lhes dar mais e mais afazeres para que se cansassem muito e deixassem as esculturas de lado.
- Parem com isso – ordenava o velho Xin Du -. Vocês devem deixar essa bobagem de lado e começar a trabalhar com mais vontade. Esse tipo de coisa não encherá a nossa despensa de comida e nem alimentará o nosso magro gado.
Para evitar as retaliações do velho, eles, às escondidas, trabalhavam durante a noite no estábulo que servia de dormitório para os dois. E No-Ri se tornava melhor a cada dia que passava.
Quando o sol começou a ficar causticante e o tempo mais seco, o Caminhante resolveu voltar à sua jornada. No-Ri sentiu-se abandonado pelo professor, mas, antes de pegar a estrada, o Caminhante o fez prometer que iria continuar a moldar argila e a aperfeiçoar a sua arte de esculpir. E No-Ri cumpriu a promessa. Todas as noites, antes de dormir, ele iniciava uma estátua pequena de tudo que ele via. Eram pássaros, vacas, pessoas. E ele tinha se tornado muito bom em moldar pessoas em argila de maneira exímia.
Mas, quando o velho Xin Du encontrava alguma estátua perdida pelo estábulo, ou mesmo, pela fazenda, ou sendo recém moldada, ela as quebrava com fúria colérica. E No-Ri era castigado com um pedaço de bambu que o velho o tinha feito recolher para que ele apanhasse quando desobedece uma ordem dele.
Numa dessas surras, No-Ri resolveu dar um basta naquela situação. Nunca iria levantar a mão para o velho, mas não queria mais apanhar como um boi no arado. Decidiu que fugiria durante a madrugada, somente com as poucas peças de roupa que ele tinha e com as estátuas que ele fabricou e queimou no forno para que se tornassem duras como o bronze.
Ele fugiu sob uma lua cheia enorme que iluminava a estrada como se fosse o próprio dia. Caminhou dois dias inteiros, faminto e sedento, até chegar ao burgo mais próximo onde encontrou uma feira. Lá se instalou, colocando as peças de terracota sobre um pano que, também, servia de cobertor a noite. As pessoas olhavam, paravam, pegavam, mas não compravam. Recebia as mais variadas críticas a respeito das suas obras – feias, estranhas, engraçadas, malfeitas, mal acabadas, etc – e isso acabava com a sua motivação. Para ele, as peças estavam lindas, diferentes do que os outros artesãos estavam vendendo. Mas para os outros, de nada valia.
Desmotivado, ele voltou para a fazenda, percorrendo o mesmo caminho, sob o sol abrasador do verão. Ao chegar, depois de cinco dias, ele apanhou do velho Xin Du. Só que, desta vez, a surra não doia tanto, pois já tinha sido ferido interiormente pelas pessoas do burgo. Aceitava resignado a sua punição, achando que o velho estava correto na sua atitude.
Mesmo assim, ele havia prometido ao Caminhante que não pararia de se aperfeiçoar na arte de moldar argila. E foi isso que ele fez por vários meses, sem que o velho soubesse. No-Ri era um homem honrado, uma das poucas coisas que ele havia aprendido com Xin Du, ser uma pessoa de palavra e honrar os seus compromissos.
O inverno se aproximava e eles tinham que entregar a última leva de tijolos para o general do imperador. O velho Xin Du estava doente e No-Ri teve que ir ao burgo para fazer a entrega sozinho. Abasteceu a carroça e voltou para a fazenda, sendo que sua estada no burgo havia durado dois dias por causa da falta de alguns alimentos. Assim que entrou pelo portão de madeira, ele percebeu que havia alguma coisa errada. O velho não havia saído para a porta da casa para reclamar da demora da sua volta com a comida. Carregando em suas costas uma saca de arroz molhada pela chuva que caia torrencialmente, ele entrou na casa escura e fria. Ele olhou para o canto da casa de dois cômodos e viu que o velho Xin Du dormia tranquilamente. Como estava muito úmida e fria, ele procurou por madeira seca para acender a lareira e esquentar o ambiente. Logo que o fogo iluminou o local, ele se aproximou do velho e percebeu que ele estava morto. Deveria ter morrido enquanto ele estava no brugo.
Com o coração pesado, ele enterrou o velho nos fundos da casa. O inverno chegou e ele havia recebido mais um pedido do ferreiro de mais de uma centena de tijolos para que ele construisse mais uma parte da sua oficina. E lá foi No-Ri, desçalço, juntar argila, junco e bambus para fazer mais peças para entregar, o mais rápido possível para o ferreiro, antes que a neve cobrisse o caminho até o burgo. Mas, com a chuva, a terra não estava muito fácil de fazer a liga com o junco e com o bambu. Ele tentava, mas os tijolos ficavam frágeis, quebradiços, e o tempo estava correndo contra ele. Novamente, ele fazia alguns e o fracasso se repetia, cada vez mais. Começou a se desesperar pois havia prometido ao ferreiro aquela centena, a primeira delas, e não estava conseguindo fazer tijolos bons o suficiente para construir nada. E ele tinha que honrar a sua palavra. Fez a centena encomendada e resolveu entregar, assim mesmo, para o ferreiro, que iria lhe pagar pelo material. Quando o ferreiro começou a erguer a parede, os tijolos se partiram, viraram pó pois não suportavam o peso de outros tijolos sobre si. O ferreiro voltou, furioso, e o xingou de todas as maneiras possível e exigiu as moedas de volta. Mas, ele já havia trocado por panelas e comida, e não tinha mais consigo. Acompanhado por seus filhos, o ferreiro invadiu a casa e levou todas as panelas e tudo o que pudesse reverter o pagamento que havia feito. Deixaram somente alguns pratos e canecas de nenhum valor para que ele se virasse. E, ainda levaram o boi mais forte, aquele que ele usava para mexer a terra e retirar a argila dela.
Tudo havia terminado. Ele estava sem nada. Abandonado à propria sorte novamente. Sentiu muito a falta do velho Xin Du, da autoridade e do dinamismo que o velho tinha. Agora, ele sabia que o velho tinha muitas responsabilidades que, quando Xin Du estava vivo, ele nem desconfiava. Ele tinha fracassado. Ele era um fracassado.
Para espantar a solidão, ele resolveu construir uma estátua de argila, em tamanho real, do velho Xin Du. Ao menos, se sentiria menos solitário, mesmo que a estátua não respondesse, mas, poderia fingir que ela respondia e que o velho ainda lhe fazia companhia. Após o trabalho ter acabado, ele a colocou na peça maior da casa, onde ele poderia vê-la. Depois, inspirado pela falta do que fazer, pois a neve tinha caído e tapado a estrada para o burgo, ele resolveu moldar o boi que o ferreiro e seus filhos tinham levado consigo em troca das moedas que ele havia gasto.
Com o passar dos dias daquele inverno prolongado, ele foi moldando e levando ao forno vários outros animais, e pessoas para que lhe fizessem companhia. Moldou até uma namorada, inspirado nas lembranças das moças que ele via no burgo. E foi preenchendo o tempo e a cabana com aqueles silenciosos acompanhantes. E, tinha decidido também, que lutaria bravamente para voltar a fazer tijolos tão bons quanto os do velho Xin Du.
A primavera chegou novamente. Para celebrar o fim daquele inverno gelado, ele colocou as estátuas na frente da casa, enquanto ele ia até a olaria para fabricar algumas dezenas de tijolos e descobrir como achar o ponto certo na mistura da argila, juncos e bambus. Ele tinha a companhia das estátuas e não se sentia só. Ainda assim, sentia um gosto amargo de fracasso que ficara na sua boca desde que o velho Xin Du partira. O velho senhor tinha razão, ele nunca seria um artesão tão bom quanto os do burgo. Ele havia sonhado em moldar uma estátua do imperador, poder ganhar algumas moedas com a sua arte, ter um certo reconhecimento. Mas, era somente um sonho e mais nada. A realidade era muito diferente e ele era somente mais um sonhador que não sabia, ao menos, fazer uma dezena de tijolos que prestasse.
Ele trabalhava dia e noite para descobrir a forma exata de fazer tijolos, e sempre fracassava. Certa tarde de verão, ele estava na olaria trabalhando, quando se aproximou uma comitiva do portão da fazenda. Mensageiros entraram e pediram para que deixasse eles descansar alí, pois haviam viajado por muitos dias, eles e os cavalos precisavam se recuperar da longa jornada. No-Ri concordou.
Quando estava para voltar para olaria, uma voz masculina da carruagem o chamou pelo seu ofício. Ele se aproximou e respondeu à pessoa que estava dentro do veículo puxado por dois fortes cavalos. A pessoa perguntou sobre Xin Du, e ele informou que ele havia morrido no início do inverno. E, também, informou que havia sido ele quem havia herdado o ofício de fabricar tijolos, mas foi sincero e admitiu que não conseguia fazer tijolos tão bons quanto o velho Xin Du. De dentro da carruagem, desceu um homem vestindo roupas de seda e de algodão, ornado com fios dourados. Era quase a figura de um deus.
Inicialmente, ele não reconheceu quem era o homem. Mas, este o chamou pelo nome. Ao se apresentar como Sima Qian, só que ele o conhecia como o Caminhante. Ele trabalhava para o imperador e havia parado alí, justamente, para saber se ele tinha mantido a promessa que havia feito algum tempo antes. No-Ri estava radiante em ver o Caminhante novamente. Tinha sido ele o mestre e a única pessoa que o havia incentivado a continuar a moldar as suas estátuas de argila. No-Ri correu para mostrar o que havia feito enquanto estava preso na fazenda por causa da neve. O Caminhante olhava para as estátuas maravilhado e orgulhoso ao mesmo tempo. Só que No-Ri também falou que estava passando por momentos de dificuldade pois não sabia como dar a liga exata nos tijolos da mesma maneira que o velho Xin Du fazia.
O Caminhante olhou para ele e explicou que ele estava no ofício errado. O dom dele, de No-Ri não era ser oleiro, mas sim artesão. Ele tinha recebido dos deuses a magia de moldar argila em formas humanas, animais e coisas mais elaboradas que tijolos. Ainda, explicou para No-Ri que ele andava pelas aldeias e burgos a procura de artesãos para trabalhar para o imperador. O imperador o havia incumbido de juntar os melhores artesãos de todas as terras que ele dominava para um trabalho especial e que, quem trabalhasse para ele, seria muito bem recompensado com terras, moedas e outras regalias que somente o imperador poderia proporcionar para qualquer pessoa.
O Caminhante perguntou para No-Ri se ele gostaria de deixar a sua arte para toda a eternidade, e ele respondeu que sim. Ambos se encaminharam para o centro do estado de Qin, a cidade de Xian, a principal cidade do império. Lá, No-Ri foi incumbido, por 38 anos,de comandar uma enorme quantidade de artesãos para fazer o famoso exército de terracota de Xian.
Finalmente, ele achou o seu verdadeiro ofício e deixou de ser um fracassado. Na verdade, ele nunca havia fracassado. Ele somente estava na direção errada. Isso prova que, quando temos uma habilidade, devemos acreditar que podemos e procurar sermos melhores quanto o possível nessa função. Sempre acreditarmos no nosso potencial, mesmo que outras pessoas critiquem, por não entenderem, ou não vislumbrarem, o que queremos e as nossas capacidades.
O fracasso é uma questão de escolha e desistência. O sucesso é somente uma questão de persistência e aprimoramento.

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